Olhos nos Olhos
A urgência do TGV
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Sala fria e sombria, por vezes iluminada com luz laranja a rodar.
Cadeiras curtas que não dão descanso.
Todas as idades de rosto fechado.
De vez em quando um suspiro fundo.
Espera.
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Luz laranja a rodar.
Corpos deitados atravessam expostos.
Barulho metálico de choque nas portas de vai-vem.
Espera.
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Chamam.
Atende médico espanhol com idioma turvo.
Espera.
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Chamam.
Abre-se um corredor extenso de macas desalinhadas como carruagens de comboio descarrilado.
Um comboio de corpos, intenso de desconforto, dor e abandono.
É urgente o TGV .
Outros fados da alma
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Ser Aquele ... ... ... .... .... ... .... ....
(Fernando Pessoa/Camané)... ...
Se estou só, quero não estar.
Se não estou, quero estar só.
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.
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Ser feliz é ser aquele
E aquele não é feliz...
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Triste Sorte ... ... .... ... ... .... .... ...
(João Ferreira Rosa/Camané)....
Ando na vida à procura
De uma noite menos escura
Que traga luar do céu.
De uma noite menos fria
Em que não sinta a agonia
De um dia a mais que morreu.
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Vou cantando amargurado,
Mais um fado e outro fado
Que fale de um fado meu.
Meu destino assim cantado
Jamais pode ser mudado
Porque do fado sou eu.
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Ser fadista é triste sorte,
Que nos faz pensar na morte
E em tudo o que em nós morreu.
Andar na vida à procura
De uma noite menos escura
Que traga luar do céu.
Amália
(23.07.1920 - 06.10.1999)
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Estranha forma de vida: ... ... ... ...
Coração independente,
Coração que não comando:
Vive perdido entre a gente,
Teimosamente sangrando,
Coração independente.
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Eu não te acompanho mais:
Pára, deixa de bater.
Se não sabes onde vais,
Porque teimas em correr,
Eu não te acompanho mais.
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Gaivota ... ... ... ... ... ... ... ...
Se uma gaivota viesse
Trazer-me o céu de lisboa
No desenho que fizesse,
Nesse céu onde o olhar
É uma asa que não voa
Esmorece e cai no mar
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Que perfeito coração
No meu peito bateria,
Meu amor na tua mão,
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração.
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Lágrima ... ... ... .... ... ... ... ...
Cheia de penas me deito
E com mais penas me levanto
Já me ficou no meu peito
O jeito de te querer tanto
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Tenho por meu desespero
Dentro de mim o castigo
Eu digo que não te quero
E de noite sonho contigo
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Maria Lisboa ... ... ... ... ... ... ...
É varina, usa chinela,
Tem movimentos de gata ;
na canastra, a caravela,
no coração, a fragata.
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Vende sonho e maresia,
Tempestades apregoa.
Seu nome próprio: Maria;
Seu apelido:Lisboa
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Povo que lavas no rio ... ... ... ... ... ...
Povo que lavas no rio
Que talhas com o teu machado
As tábuas do meu caixão.
Pode haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não
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Medo ... .... .... ... ... ... ... ... .... ....
Quem dorme à noite comigo
É meu segredo,
Mas se insistirem, lhes digo
O medo mora comigo.
Mas só o medo, mas só o medo.
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Não é desgraça ser pobre ... ... ...
Não é desgraça ser pobre,
Não é desgraça ser louca
Desgraça é trazer o fado
No coração e na boca
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Uma espantosa expressão de homenagem :
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" Amália é o outro nome de Portugal "
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Miguel Esteves Cardoso
Bom como o pão
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Depois do ruído das ruinosas eleições, sabe bem ao paladar da alma reler um trecho assim :
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" O avô de alguém que me é querido dizia de uma pessoa boa.
É bom como o pão e ao lado disto que maior elogio se pode fazer? "
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António Lobo Antunes